São Paulo, 31 de agosto de 2024.
Namastê!
Doze graus, um sábado frio e chuvoso. Na cozinha, tirei do armário minha panelinha de ágata branca, que uso para fazer mingau. Coloquei uma medida de aveia, três medidas de leite de castanhas e um scoop de proteína vegetal. Os toppings são minha parte preferida. Decorei com maçã e canela, chia, semente de girassol e uma paçoca. Esse ritual do mingau é delicioso nas minhas manhãs, é um autocarinho. Daria até um vlog de rotina no estilo vivendo sozinha em São Paulo.
Uma noite dessas, um monte de vídeos com títulos living alone começaram a aparecer pra mim no YouTube. Depois que assisti um, eles se multiplicaram na timeline. Não achei ruim, porque assisti vários e gostei.

A moça do Living with Mardu, da Suécia, preparou, assim como eu, um mingau, mas de centeio. Ela fez diferente, colocou água e figos secos na panela e, no prato, cerejas, nibs de cacau e um pouco de leite. Também era uma manhã fria, ela organizou a casa para a visita dos pais, brincou com seu cachorro Mardu, e preparou um cheesecake de mirtilo. As imagens são poéticas, o rosto não aparece, ela só coloca legendas com descrições.
Do Japão, Nami filmou, com esse mesmo estilo e uma trilha sonora delicada, uma noite fria de inverno, focando em cada detalhe desde o momento em que chega em casa, guarda as compras, prepara o banho, coloca o pijama e faz comidinhas aconchegantes de Natal.
Moonnight, da Coreia do Sul, já mostra o rosto no vlog, usa muitos recursos de ASMR e, no vídeo que eu vi, preparou um omelete de tomates e uma sopa de pasta de soja, intercalando com as atividades no seu apartamento em Seul.
Tem ainda a Morenikeji, da Nigéria, que faz imagens de cada movimento do seu dia, abrindo a gaveta, arrumando a cama, estendendo roupa. Ela explora o ambiente externo, seus trajetos pela cidade, ida à igreja, aula de arte e mercado. A comida também está lá, ela fez um garri, algo como um mingau com farinha de mandioca, açúcar, leite em pó e água, típico da África Ocidental, e comeu junto ao kilich, uma carne seca comum nesta região. Morenikeji vai descrevendo tudo nas legendas e mostrando a rotina de quase uma semana, do domingo até o sábado.
E assim acumulei algumas horas de distração com esses vídeos. Achei curioso. Sei que existe de tudo na internet, mas essa tendência de vlogs de pessoas que moram sozinhas filmando suas rotinas foi uma novidade pra mim e me surpreendi com o número de mulheres que vivem como eu.
O primeiro vlog de living alone que apareceu pra mim, na verdade, não foi de uma mulher. Askjapan mostrou a noite de sábado de um homem de meia idade, como ele se descreve, jogando videogame e tocando violão. A qualidade da imagem não tem o mesmo cuidado dos vídeos das meninas, que capricham no roteiro, composição e edição. Ele só ligou a câmera e filmou de um jeito honesto o que faz e como se sente. Teve ainda o Anagra, outro homem do Japão, que mostra sua vida em um antigo quarto japonês, ele sim com imagens pensadas, meio cinema. Ele narra os vídeos em japonês e deixa legendas disponíveis em várias línguas.
Tanto eles quanto elas, no fim, têm o mesmo objetivo: compartilhar, porque, por mais bem que estejamos sós, a troca com o outro é essencial para o ser humano. Nesses vídeos no YouTube, outras coisas estão envolvidas, como monetização, profissionalização, exposição e até uma certa romantização, mas a essência mesmo é o compartilhar. É como nas redes sociais, que hoje são mais um ambiente de validação com alguma toxicidade, mas no começo, ou para quem resiste nessa direção, era só um espaço virtual para compartilhar e se conectar.
Naquele filme Na Natureza Selvagem, Christopher McCandless, aventureiro em busca de solidão e liberdade na natureza, chega a uma conclusão: “a felicidade só é real quando compartilhada”. É uma história de verdade, baseada no livro Into the Wild, do jornalista e alpinista Jon Krakauer. Eu tenho uma camiseta com a frase e a estampa do ônibus onde McCandless viveu seus últimos dias. Não sei se concordo 100%, fico dividida, ao mesmo tempo que sei o valor de estar junto, sei que estar só traz viagens internas únicas no caminho da autodescoberta.
Na minha sessão de vlogs com pessoas sozinhas, o algoritmo também me mostrou aventuras na natureza. A Ruth filmou como foi sua noite em um bothy nas montanhas da Escócia. Um bothy é um abrigo simples, deixado destrancado e disponível para qualquer pessoa usar gratuitamente, geralmente aventureiros solitários que fazem trilhas em lugares selvagens.
A Claire filmou os três dias do seu camping selvagem em um parque no País de Gales, montando e desmontando a barraca com muita chuva e vento, intercalando caos e calmaria.
Lembrei que recentemente assisti o filme Wild, que foi traduzido para Livre no Brasil. É a história real de uma mulher que decidiu fazer uma trilha de 1.100 milhas, cerca de 1.700 quilômetros, na costa do Oceano Pacífico, para se reconectar consigo mesma e superar os desafios que passou na vida.
Todas essas aventuras têm a ver com liberdade e reconexão interna. Já tive meus momentos solitários em meio à natureza, como os dias em uma cabana no Alentejo, sem energia elétrica e o céu mais estrelado que já vi. Também no sul de Portugal, fiquei sozinha em uma caravan em uma época rara de chuva e ventos fortes na região, o som das árvores à noite era assustador, mas, ao mesmo tempo, a sensação de estar protegida por algo maior era inexplicável.
Fiz trilhas na Ilha de Skye, na Escócia, um dos cenários mais deslumbrantes que já visitei. Não acampei, fiquei em um albergue, mas foi uma aventura solo inesquecível. E, recentemente, passei alguns dias só em uma casa na serra do Rio, e a mesma sensação de acolhimento por algo que não é físico, mas está presente, me acompanhou. Em uma das noites lá, vi um vídeo com a história da Enya (a cantora), que hoje vive sozinha em um castelo na Irlanda.
Viver sozinha pode ser uma escolha, uma circunstância ou uma transição, mas certamente envolve coragem, habilidade - para resolver perrengues - e, às vezes, um pouco de solidão. Nem sempre ela aparece, mas quando aparece, é olhar para ela e não se afundar, porque é só um sentimento e, como todo sentimento, vem e vai, não é permanente.
No hábito jornalístico, pensei em referenciar aqui estudos e livros que falam da solidão na atualidade, mas vou me poupar dos dados e fontes, porque isso é uma carta e não uma reportagem, mas observo como é um tema recorrente, tenho conversado com amigas sobre solidão e, certamente, é uma condição da sociedade moderna que ainda precisa ser refletida e entendida.
Essencialmente, estar sozinha não quer dizer ser solitária e a liberdade, incontestavelmente, é a melhor parte. Li há um tempo uma lista de coisas para fazer sozinha, gabaritei. Ir ao cinema, restaurante, show, museu, viajar etc. Depois de um relacionamento de anos, não sabia que era capaz de me divertir sozinha, algumas circunstâncias da vida nos limitam e é muito bom se libertar ou ser libertada delas. Todo mundo deveria experimentar a solitude.
Fui agora na lojinha de produtos naturais aqui perto comprar cacau em pó, o atendente perguntou se ia ter brigadeiro, eu disse que não, que ia ter bolo de cenoura. No isolamento durante a pandemia, eu fazia um bolo toda a semana, era meu método para marcar o tempo, meu autocarinho da época, foram meses completamente sozinha, um período de aprendizado, busca e reconhecimento de quem eu verdadeiramente sou. Foi assim que passei a valorizar ainda mais a minha companhia assim como valorizo a companhia das pessoas. Livre para estar só, livre para estar junto.
Amanhã é domingo, fica tudo mais calmo em São Paulo. Às vezes, vou visitar minha família, também daria um vlog, a viagem de trem, observar o trajeto, as pessoas. Talvez um dia eu faça. Já é noite, vou comer meu bolo.
Com amor,
Patricia ॐ
Que texto incrível! Sempre bom te ler, escreva sempre. Beijos.