São Paulo, 30 de novembro de 2024.
Namastê!
Era outubro de 2023. Naquela manhã, reparei pessoas andando pelas ruas da comunidade com rosas brancas nas mãos. Estando lá há 4 meses, os rostos já me eram familiares, assim como eu reconhecia o movimento atípico da rotina local.
Depois soube que aquele grupo havia se reunido para se conectar, homenagear e se despedir de um casal amigo de Findhorn, que estava na Suíça terminando a assistência para sua passagem. Os dois escolheram atravessar juntos o portal para o outro lado, aquele que nós todos um dia estaremos.
O Rainbow Bridge, o periódico da comunidade, trouxe na semana seguinte uma página dedicada ao casal, com mais informações de como os amigos honraram sua jornada de coragem, continuidade e transformação nesse plano.
Um ano depois desse episódio, apareceu a notícia do poeta Antonio Cicero, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), que tinha Alzheimer e optou, assim como o casal de Findhorn, pela morte assistida na Suíça. Ele deixou para amigos e família uma carta de despedida bonita e consciente de sua decisão.
Na Suíça, a eutanásia é permitida por lei e, por isso, alguns seres vão até lá para serem assistidos na decisão de morte enquanto pacientes de doenças sem perspectiva de cura.
É curioso que a morte seja uma realidade para esse corpo perene, uma etapa inevitável da existência, mas há muita fuga ao abordar ou mesmo pensar no tema.
Pode ser medo do desconhecido ou apego ao que é terreno, mas para a maioria de nós escolher adiantar essa passagem, ao invés de fugir dela, é incompreensível. No caso da eutanásia, me parece uma decisão acompanhada de liberdade e serenidade. Tenho muito respeito por quem segue esse caminho.
Na mesma direção, apesar de não viajar à Suíça para uma morte assistida, Sun* escolheu um outro trajeto também ao seu encontro. Com uma doença cardíaca, ele se recusou a seguir o protocolo de tratamento, assumindo a possibilidade de cura autônoma ou o risco de sucumbir.
Ele me alugou, no ano passado, seu trailer renovado para uns dias na comunidade, disse que também estava com sua casa disponível, caso que eu quisesse permanecer por mais tempo, pois ia viajar por alguns meses para a Inglaterra e depois fazer o Caminho de Santiago de Compostela.
A última imagem que tenho é dele colocando suas coisas no porta-malas do carro para a viagem. Nós tínhamos algo em comum. Ele conheceu meu professor espiritual, passou uma temporada na Índia, depois me mandou uma foto que tirou dele na época, porém se denominava #antiguru e #antisatsang, mas não tive tempo de discorrer mais sobre isso com ele.
Sun criou um grupo no WhatsApp para enviar aos amigos notícias da sua jornada em busca da cura e me incluiu. Não era um grupo interativo, só ele enviava mensagens, às vezes fotos e áudios relatando onde estava e como estava se sentindo. Também publicou textos no seu blog Dead Man Talking como um diário dos seus dias terminais. No último post, ele começa: "Descobri que morrer com um coração defeituoso é extremamente doloroso”; e termina: “Se esse for meu último post, então eu realmente era um Homem Morto Falando”.
Hoje, Sun está integrado à terra de Findhorn, no cemitério verde em uma clareira no meio da floresta, onde não há lápides, o Green Burial. Eu costumava ir meditar lá ao amanhecer, sentava em um dos bancos de madeira e esperava o sol aparecer pacificamente e brilhante entre os pinheiros.
No centro, há um mastro com fitas, usado na celebração de Beltane, que é um dos sabbats na Roda do Ano do calendário celta, do qual Samhain também faz parte, sendo que o primeiro celebra a vida e o segundo a morte. A crença é de que em ambas as datas os véus entre os mundos se tornam mais sutis e as almas transitam mais facilmente de um lado para o outro.
Visitei alguns cemitérios na Escócia, não sei bem o porquê, de repente, lá estava eu caminhando em meio às cruzes celtas, honrando as almas ali reverenciadas e encontrando naquele espaço um lugar de silêncio interior.
Enquanto estava na comunidade, tirava uma carta por semana no oráculo Findhorn Spirits, para sentir a energia que me guiaria nos dias seguintes. Em meio às 44 cartas, a mais recorrente, e insistente, era a Transcendência.
No livrinho, a mensagem:
Eu sou o Guardião da Transmutação. (...)
Tudo que tem um começo terá um fim e eu estou aqui para acompanhá-lo durante esta transição. (...)
O processo de mudança é natural, você vive em um mundo que muda de forma. Você também vive em uma sociedade com fobia de morte, mas não deixe seu senso estético impedi-lo de abraçar todos os aspectos da realidade, incluindo a desintegração. (…)
Prática: se tiver oportunidade, vá a uma pilha de compostagem ou a um cemitério ou mesmo a um centro de reciclagem e passe algum tempo observando que tipo de pensamentos e insights surgem. (…) Quais ações são necessárias quando você se torna mais consciente de sua própria mortalidade?
Foi assim que cheguei ao Kinloss Abbey, em Forres, fundado em 1150, que vale conhecer por ser um cemitério histórico, mas que recebeu minha visita para atender à prática sugerida pelo espírito da Transcendência.
Passei um tempo lá, completamente sozinha em corpo, a não ser pela presença súbita de um ciclista que testemunhou de longe minha reação emocionada ao andar pelas lápides de um memorial adornado com rosas vermelhas vibrantes.
Era para soldados da Força Aérea Real que fizeram sua passagem em serviço. O que me tomou ali não sei explicar, mas li um a um todos os nomes, idades, funções e In Memoriam. Eram muitos jovens, de 18, 19, 20 anos, pilotos, cozinheiros, paraquedistas. Outros mais maduros, com patentes mais elevadas, mas todos com mensagens afetuosas e saudosas de mães, esposas, filhas e filhos.
Ali, senti profundamente a sensação de impermanência, finitude e, se muitos não entendem por que adiantar a morte na perspectiva de uma doença terminal, para mim é mais incompreensível ter a vida abreviada na circunstância de um conflito de guerra. A pergunta que veio foi: por quê? Por que estamos aqui? É a resposta existencial que busco no meu caminho espiritual.
Na passagem do ano de 2023 para 2024, já em São Paulo, tirei minha carta do oráculo para esse momento de transição celebrado no calendário gregoriano e quem veio mais uma vez foi ele, o espírito da Transcendência. Na mesma noite, a mensagem que apareceu na tela do satsang ao vivo com meu professor espiritual foi "Desejando o mais transcendente Novo Ano".
Assim, sigo buscando ir além do que é material, buscando transcender.
Com amor,
Patricia ॐ
*Sun não é o nome real dele.
Esse seu texto me emocionou demais! Parabéns.